Apropriação cultural, antropofagismo e outros carnavais
O tema apropriação cultural no carnaval foi recorrente no último mês, porém, esse é um assunto há tempos discutido pelas “minorias”e só recentemente ouvido por mais pessoas. O tema é polêmico, porém, passível de entendimento quando ouvimos com o coração aberto e vindo de quem tem sua cultura como algo sagrado e missão de vida, como Daiara Tukano. O artigo a seguir foi escrito por essa doce guerreira que é indígena do povo Tukano, formada pela Universidade de Brasília, Mestranda em Direitos Humanos; Educadora, militante indígena, feminista, artista e correspondente da Rádio Yandê – http://radioyande.com. O artigo a seguir foi publicado originalmente em 22 de fevereiro de 2017 no portal da Rádio Yandê.
O samba do deleuze doido: Apropriação cultural, antropofagismo, multiculturalidade, globalização, pensamento decolonial e outros carnavais.
O debate sobre apropriação cultural foi reacendido ultimamente nas redes sociais; colocações sobre intolerâncias, identidades étnicas e raciais, moda, trocas culturais e relações de poder na sociedade tem sido argumento constante em diversas discussões transformando o termo num bicho de sete cabeças.
A maioria das discussões que tenho tido oportunidade de acompanhar tem partido rapidamente para o deboche e as ironias de ambos lados, mas tive a oportunidade de ser interpelada por várias pessoas com as quais tive ótimas conversas inclusive nas divergências! acredito que o debate sobre apropriação cultural enriquece a todos pois ele trata essencialmente da expressão das identidades, identidades estas que são múltiplas e em constante transformação.
Apropriação cultural se refere a dois termos: “Apropriação” e “Cultura”, mas afinal o que é cultura?
Calma gente, não vou tentar explicar a história do mundo, mas vamos minimamente de wikipédia: “Cultura significa todo aquele complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano não somente em família, como também por fazer parte de uma sociedade da qual é membro.” Em suma cultura é um conceito extremamente complexo e impossível de ser fixado de modo único, de qualquer forma podemos afirmar que ao longo da história da humanidade, a cultura está constantemente em transformação, e que ela varia na infinidade de contextos que acabam definindo mais ou menos as identidades de grupos humanos, assim com o tempo vamos falando de cultura negra, européia, asiática, indígena etc.
O debate sobre apropriação cultural é acima de tudo um debate sobre identidade cultural: a autoafirmação e o pertencimento a um grupo diante da necessidade de se definir diante do universo, aquelas perguntinhas básicas “quem sou eu, de onde venho e para onde vou”, coisa de bicho gente.
A identidade, um dos principais paradigmas da consciência humana, se constrói em relação a si e em relação ao outro: as alteridades, aproximações e distanciamentos, e a maneira como os grupos sociais se interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro.
Não precisamos contar a história do mundo para entender qual parte herdamos dela, todos estamos inseridos em contextos próprios que nos revelam com sutileza quotidiana nosso recorte social: nossos privilégios e principalmente desvantagens dentro da sociedade.
Todos temos nosso contexto e o termo “Apropriação Cultural” também. O termo surge diante das relações da colonialidade e do pensamento decolonial, isto porque todas nossas culturas continuam inseridas no paradigma da colonização, especialmente aquele em que a cultura européia passou a se sobrepor às outras fazendo o uso de violência e força bruta: a colonização, a escravidão e o genocídio são fato histórico que colocou diversos grupos numa situação de desvantagem estrutural em nossa sociedade.
Quando usamos o termo “minoria” nos referimos basicamente a aqueles que estão em desvantagem diante dos herdeiros do poder hegemônico e não a termos numéricos. São oprimidos aqueles que sofrem violência, preconceito e discriminação por afirmar sua identidade que é vista como periférica e inferior aos parâmetros da cultura hegemônica.
O etnocentrismo europeu ainda é um pensamento tão forte que continuamos a diferenciar o pensamento oriental do ocidental como se a terra não fosse redonda.
“-ah mas Hoje vivemos num mundo globalizado!”
O termo “globalização” pode ser uma armadilha, mas somos um povo de fé, muitos acreditam na globalização e outros na democracia e dizem que somos iguais como se hoje no planeta não existissem enormes violências e desigualdades sociais que testemunhamos diariamente. Alguns argumentos contra a tese da apropriação cultural se tecem em falsos paralelismos entre as minorias e a hegemonia, nessas horas gosto de lembrar de Malcolm X e sua frase mais célebre: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”.
Quando nos referimos às violências estruturais em nossa sociedade, como racismo ou machismo, nos referimos a uma problemática do sistema que nos coloca em certos contextos, por exemplo o fato do fenótipo caucasiano ser considerado e apresentado pelas mídias como superior, mais bonito e bem sucedido que os outros principalmente nos países que sofreram uma colonização mais bruta. Basta andar na rua ou abrir qualquer revista ou site para ver nos anúncios ou na tv uma maioria branca e urbana vendendo coisas e comprando outras, o que nos leva a um quarto paradigma: o dinheiro, porque o poder econômico também é origem e resultado do processo colonial.
Não sejamos ingênuos: toda guerra e toda colonização acontece por poderio econômico. De acordo com o dicionário “Apropriação: É o ato no qual o sujeito obtém posse de algo que não lhe pertencia, tornando-o próprio.” Tem quente que chama colonização de “conquista e progresso” outros que chamam de “genocídio e roubo”, para uns o ouro significa riqueza, para outros morte. A história do mundo se divide em duas versões, a dos colonizadores e a dos invadidos.
O termo “colonizar” Vem de colônia, do Latim COLONIA, “terra com gente instalada, granja”, de COLONUS, “pessoa instalada numa nova terra”, de COLERE, “habitar, cultivar, respeitar, guardar”; muito bonito aprender latim, o problema é quando pessoas querem se instalar numa terra que já é habitada, tomam a terra a força, exploram suas riquezas naturais e culturais, e ainda tem a pachorra de fazer isso sob o argumento que a população que ali habita é menos capaz, inteligente ou humana que a invasora, e essa é a história de muitos povos originários que tiveram e tem seus territórios ocupados até hoje.
Quando me refiro a território não falo unicamente da terra material, mas dos territórios dos corpos e das culturas dessas sociedades, que também foram sumariamente e arbitrariamente invadidas e diminuídas por séculos.
“-ah mas as trocas culturais são inevitáveis!”
Abordei no texto alguns termos para entender a discussão sobre apropriação cultural: cultura, identidade, poder, colonização, dinâmica e estruturação, mas talvez a mais relevante seja “contexto”. Existem trocas e trocas: vamos pensar numa boa janta, há poucas coisas mais bonitas gostosas e sagradas que poder compartilhar de um bom alimento, sentar lado a lado e saborear um prato delicioso como amigos. Agora imagine que você está comendo e chega um desconhecido, pega tua comida que você plantou, caçou e cozinhou, te chuta, come tudo e daqui a pouco abre um restaurante com tua receita porque achou gostosa, mas não sabe minimamente do trabalho que dá pra fazer, então te bota pra cozinhar pra ele, lucra com isso e te deixa comer só os restos… apropriação cultural é tipo assim e pior.
Identidade é significado, é responder aquelas perguntas de bicho gente, quem somos, de onde viemos e apontar para onde vamos, ter identidade é existir como indivíduo e como grupo. Para as populações que sofreram o processo colonial, afirmar sua identidade tem sido um ato de resistência muito dolorosa porque durante séculos fomos chamados de inferiores, burros, selvagens, feios, incapazes ou loucos: é o drama da alteridade, do não reconhecimento do outro e da mais pura e violenta ignorância.
A identidade e a cultura também precisam de um espaço vital para poder respirar e continuar existindo como tal: toda cultura tem seu espaço do sagrado e do segredo, aquilo que nos é próprio e que não vai ser compartilhado de maneira leviana; aquilo que está na zona da intimidade, umas coisas são como calcinha e escova de dente, outras como o fígado ou o coração.
“-ah mas todas as culturas também se apropriam da cultura ocidental!”
Esse é um argumento é utilizado ignorando a violência do processo colonial, aqui não estou falando em tukano mas escrevendo em português e isso não me torna menos indígena. Aos povos originários foram impostos a língua, os costumes e os saberes do colonizador, não é a toa que para argumentar nos cobrem constantemente a validação científica de acordo com o pensamento ocidental como se já não tivéssemos o próprio, e justamente por isso nos ver na necessidade de discutir racismo, preconceito e apropriação cultural nos cansa e irrita tanto. A cultura do colonizador nos foi imposta sob ameaça de morte para ser minimamente reconhecidos como humanos, e nos reservou apenas os espaços periféricos sempre em desvantagem diante daqueles que tomaram nossas riquezas e continuam se reservando o poderio econômico e cultural. No brasil a Lei áurea tem 129 anos e até 1988 os “índios” eram considerados incapazes, negros e indígenas somos os grupos com maior vulnerabilidade social, em situação de pobreza, dificuldade de acesso à propriedade e à terra, à saúde, à educação e ao mercado de trabalho, e ainda assim precisamos conviver com discursos rasos sobre meritocracia e “aprender a pescar”.
“Aculturação” é um processo que implica a recepção e a assimilação de elementos culturais de um grupo humano por parte de outro. Desta forma, um povo adquire uma nova cultura ou certos aspectos da mesma, usualmente em detrimento da cultura própria e de forma involuntária. A colonização costuma ser a causa externa de aculturação mais comum. Os processos de aculturação têm diferentes níveis de destruição, sobrevivência, dominação, resistência, modificação e adaptação das culturas nativas perante o contacto intercultural. O termo “Aculturado” é frequentemente usado para desqualificar, diminuir e até negar a identidade indígena.
O racismo foi um conceito criado como argumento para a colonização, a violação e a desqualificação do corpo e da cultura dos povos invadidos, por isso afirmar que “branco sofre racismo” é um falso paralelismo, afinal eles não herdaram essa parte da história, enquanto que os “não brancos” somos lembrados quotidianamente.
“-mas afinal, a história do turbante?
O turbante poderia ser um cocar. Somos sujeitos de uma identidade cultural repleta de saberes, práticas e objetos que traduzem profundos significados, elementos que usamos para reafirmar quem nós somos. Cada grupo social tem símbolos, práticas, saberes ou objetos que sintetizam suas identidades que esses grupos preferem reservar para si, ou não fazer deles objetos de comercialização para outros grupos.
A questão da apropriação cultural se trata frequentemente da comercialização desses objetos, isto porque o comércio muitas vezes os esvazia de seu significado, tornando-os acessórios de moda, e isso também é uma prática colonialista.
“-ah mas o turbante é um acessório, era usado nos anos vinte, e além do mais tem em muitas outras partes do mundo”
Esse argumento é usado com frequência inclusive mostrando fotos de turbantes tradicionais de vários grupos étnicos ao redor do mundo, mas pode ter certeza que cada turbante tem um significado único e diferente para cada um. Aliás vários adereços não europeus viraram moda na Europa quando essas regiões estavam colonizadas, e era uma forma da classe dominante exibir as riquezas e raridades que vinham das colônias sem abrir mão do preconceito contra os povos colonizados. O tal “exotismo” exibido em modelos brancas parece misteriosamente mais vendável que em peles mais escuras. A moda vem e passa, enquanto os povos de origem desses objetos sentem sua identidade banalizada. Estamos no Brasil e aqui frequentemente minorias são agredidas por expressar e vestir sua cultura: muitos já fomos insultados usar um turbante fora do terreiro ou um cocar ou pintura fora da aldeia.
“-o resto do mundo não se importa, só vejo esse papo de apropriação cultural no brasil e nos estados unidos”
Muitos reclamam também que a tal apropriação cultural só é discutida nas Américas, isto porque aqui o paradigma da colonização é bastante peculiar, então o turbante negro aqui no brasil tem um significado próprio a não ser comparado com o contexto dos outros países: afinal este foi o último país do mundo a assinar o fim da escravidão. Por isso acredito que que os símbolos da resistência negra sejam sim algo a ser muito respeitado pois só eles sabem de sua história e tem o direito de definir os espaços de sua identidade.
Como indígena posso citar o cocar como um dos mais importantes símbolos da resistência indígena. Cada povo tem seu cocar e geralmente cada cocar seu significado. Nos cocares dos povos da América do norte por exemplo, cada pena é conquistada pelos guerreiros, por isso os povos indígenas de lá se organizam entre eles para restringir a comercialização dessas penas apenas a indígenas. É possível ver na internet belíssimos registros dos Powows norte americanos onde os maiores cocares pertencem aos anciões. Vi em vários povos diferenças entre os cocares das lideranças políticas e espirituais, de homens, mulheres e crianças etc. Estes objetos valiosos são algumas vezes presenteados como ato de reconhecimento, amizade ou honra para pessoas de outros povos, isso pode ser considerado uma troca respeitosa e legítima, diferente daqueles que querem comercializar para usar no carnaval ou na festa rave para afundar na lama um esterótipo terrível de índio.
“-o que? não pode usar fantasia de índio no carnaval? ah que chato! que patrulha!”
Você pode se fantasiar até de abacaxi se quiser, eu curti muito a fantasia de “muro do trump” neste ano, fantasia não falta, pode se fantasiar de índio, padre, de freira, de nazista, de black face, mas sinceramente não ache que essa liberdade toda te impede de alguém se incomodar com isso, ou porque essa identidade é inalienável a essa pessoa e para ela não se trata de fantasia, ou porque ela fere diretamente sua memória identitária. A questão não é “poder isso” ou “não poder aquilo” o arbítrio é livre, empatia e respeito é legal.
“-Ah mas no clipe da Madonna tem fantasia de freira!, e o Antropofagismo na arte?”
A criação artística tem um contexto poético, José de Alencar escreveu O guarani e Iracema num período de afirmação da identidade brasileira, o movimento modernista da semana de 22 também, cada um no seu contexto histórico e a madonna também. Por sinal o exemplo do clipe “Like a prayer” da madonna é ótimo, porque caso não tenha ficado claro ela faz uma severa crítica certas visões que a igreja católica teve em certos momentos de sua história sobre sexualidade e raça. Conversando com um amigo lembramos de como a cruz tem sido um símbolo usado de maneiras diversas ao longo da história, por exemplo, para os primeiros cristãos a cruz era um símbolo de resistência ao imperialismo romano; ironicamente depois a igreja católica se tornaria estandarte da colonização européia.
Um dos símbolos sagrados que sofreu uma apropriação cultural das mais brutais foi a suástica, símbolo sagrado de povos asiáticos, que foi apropriada pelos nazistas e hoje é mais conhecida como símbolo de extermínio e intolerância. Cito isso como exemplo de como pode ser violenta a dessignificação de um símbolo ou sua ressignificação total.
“-poxa mas nem brinco pode? e pulseira?”
Bem, vamos voltar à moda: todos os povos têm seus acessórios decorativos que não se inserem nessa questão profunda da espiritualidade ou da identidade, estes sempre foram objeto de troca comercial, mas de qualquer forma quando se trata de reverenciar ou celebrar a cultura indígena fica o convite de conhecer um pouco mais sobre sua origem e seu povo. Tem muitos artesanatos indígenas lindíssimos a ser apreciados por todos, muitas vezes a questão está mais para quem vende. Existem muitos atravessadores que compram estes objetos por preços baixíssimos e os revendem superfaturados e acrescentados de um exotismo esvaziado de sua real riqueza cultural, o melhor é sempre adquirir na fonte.
“-ah mas eu quero prestar homenagem a uma cultura, ou a um povo”
Uma das conversas mais interessantes que tive sobre a questão da apropriação cultural foi quando uma amiga que trabalha com mandalas de lã colorida veio falar comigo, preocupada em saber se ela estaria cometendo uma gafe, explicou que fazer as mandalas era uma terapia maravilhosa para ela e que tinha se tornado uma alternativa para seu antigo trabalho, explicou que tinha origem no povo Huichol do méxico. Meu primeiro impulso foi perguntar a ela o que ela sabia sobre aquele povo, por exemplo o verdadeiro nome na língua dele: Wixárika, uma vez que “huichol” significa “bêbado”; então ela fez uma pesquisa simples no google para ler mais sobre esse povo e descobriu atônita que eles faziam uso da plantas de poder. Eu expliquei pra ela que a planta sagrada desse povo é o peyote ou hikuri, base de toda sua espiritualidade, identidade e do colorido de seu vestuário, desenhos e mandalas… ela finalmente entendeu que sabia muito pouco sobre o objeto de sua profissão, e ficou empolgada em conhecer mais sobre a cultura daquele povo. Eu espero sinceramente que ela chege a ponto de se informar mais sobre sua situação política hoje, e por exemplo da guerra que travam contra a mineração em sua terra sagrada onde nasce o hikuri sagrado. Acredito que a melhor homenagem é aquela que reconhece a singularidade de uma identidade, sem necessariamente querer entrar em todos seus espaços porque pode gerar atrito sobre a questão do protagonismo dessa identidade.
“-e se for no contexto espiritual ou religioso?”
A espiritualidade, a cosmovisão e o entendimento de mundo está no coração e na coluna vertebral de cada cultura. O direito democrático à liberdade religiosa é uma conquista enorme após séculos de intolerância religiosa que parecem não ter fim. As religiões como as culturas também estão em constante transformação, no Brasil existem várias religiões frutos de sincretismos diversos e cada uma nasceu num contexto histórico e social particular criando identidade própria.
Porém não posso deixar de mencionar um fenômeno peculiar que acontece ocasionalmente com a apropriação cultural da espiritualidade indígena: o xamanismo de butique. Sem desconsiderar as experiências espirituais que algumas pessoas vivenciam em “cursos” e “oficinas” de “xamanismo’ é necessário chamar a atenção para personagens exóticos capazes de comprar qualquer cocar, qualquer roupa e colar, usar qualquer pintura e se apresentar como “Xamans” ou “Pajés” e ainda “diplomar” outros “xamans” sem, é claro, deixar de cobrar com isso.A espiritualidade está para ser vivenciada e celebrada e por quem abrir o coração a ela, cada povo tem a sua e cabe apenas a ele decidir se vai compartilhá-la, esperando que seja recebida com muito cuidado e respeito. Nesse quesito o que define o pajé não é o cocar, mas sua experiência e seu aprendizado e dinheiro não tem nada a ver com isso.
A real identidade indígena pode ser bem distante dos estereótipos criados sobre os índios no Brasil: a imagem do “silvícola”, “não miscigenado”, “selvagem”, “aldeado” ainda predomina no imaginário brasileiro que ignora que segundo o IBGE 38,5% da população indígena vive em contexto urbano. E muitos ignoram a enorme resistência de muitos povos do primeiro contato que continuam aqui até hoje fortalecendo sua cultura. Cultura é algo dinâmico, em constante transformação e auto afirmação. No caso dos povos indígenas das Américas por exemplo se fala no processo de etnogênese, no qual muitas povos que chegaram a ser quase extintas ou totalmente “integradas” passaram a afirmar sua raiz e fortalecer suas práticas originárias para afirmar sua identidade.
Se um dia fomos considerados “aculturados”, hoje muitos estamos em processo de “desaculturação”, e quando for necessário, estaremos dispostos a lutar para defender os símbolos de nossa cultura passados de geração em geração.
“-esse policiamento do politicamente correto cansa”
Certamente, é muito chato ter que sentar para conversar e explicar eternamente algo que para nós parece tão evidente. Pessoalmente sou favorável ao diálogo, e a polêmica da apropriação cultural tem chegado a embates físicos que acho questionáveis porque esse é um problema do sistema, da história comum a todos e não unicamente de indivíduos.
Sandra Fontana resume bem a problemática: “Este é um assunto difícil por se levar pela amplitude do desenvolvimento da humanidade, mas o primordial é o compreender que a apropriação cultural se refere à descolonização, já que tem um profundo poder de crítica aos paradigmas dominantes ao propor outros princípios de inteligibilidade da história e do presente, das hierarquias naturalizadas e dos silenciamentos constitutivos, em fim, uma nova perspectiva analítica para compreender de outros modos algumas das problemáticas que se enfrenta por causa da globalização colonial, e do universalismo eurocentrista.
Esse debate acontece no contexto da afirmação das propostas da pluriversalidade e da interculturalidade dos grupos minoritários, sendo assim, criadas pela necessidade de se assumir e compreender e respeitar o surgimento da resistência das comunidades negras e indígenas frente à modernidade/colonialidade para uma construção de uma nova transformação social, econômica, política e cultural.”
(um exemplo constrangedor de abordagem da temática indígena no ensino fundamental)
Para poder contribuir a transformar a sociedade num espaço mais justo, igualitário e respeitoso da diversidade, precisamos nos questionar sobre os estereótipos que tecemos sobre a imagem dos outros e a compreensão de seus símbolos, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada.
Para mim discutir apropriação cultural é um convite para o abraço: nos conhecer melhor em nossa alteridade, nossas identidades, histórias e culturas.
Fonte: Daiara Tukano para a Rádio Yandê