A Bênção dos Prazeres à Manhã de Carnaval
Samuel sempre odiou o carnaval. Quando era adolescente, foi a alguns bailes com os amigos, mas não conseguia se divertir, tinha problemas com as drogas da época, como o loló, que lhe causavam desmaio imediato, o que ocorreu duas vezes, tendo ele que se explicar para o segurança do baile, que o olhava com o canto de olho como se ele tivesse cometido uma overdose, e, sobretudo, o som era tão alto e ruim que ele não conseguia apreciar a música. Ademais, não dançava bem. Era ruim de ritmo e se cansava facilmente se pulasse por apenas alguns minutos. Só que a Sara gostava, então, por causa dela, para botar aquele sorriso no rosto da amada, passou a frequentar os carnavais de rua. Vestia até fantasia, gostava de meter uma peruca rosa-choque na cabeça, porque só isso já era suficiente para torna-lo irreconhecível e, para todos os efeitos, totalmente fantasiado. A Sara o carregava para os blocos carnavalescos quase todos os dias do carnaval. Após muita negociação, o Samuel conseguiu uma liberação da segunda-feira, quando conseguia ler alguma coisa e descansar as pernas. Após sete anos de casado, mesmo indo a blocos de todo o tipo, desde os maiores, que, para ele, apenas fediam a mijo, até os familiares, que saíam de manhã em cenas bucólicas pelas superquadras iluminadas de Brasília, e que ele considerava enfadonhos e arrastados, o Samuel não se havia convertido ao carnaval. A Sara estava resignada, e, muitas vezes, achava que seria melhor mesmo ele ficar em casa. Só que ele acabava sempre indo, com seu uniforme rosa-choque na cabeça. Além do mais, a quadra em que eles moravam, a 202 norte, ficava ao lado de uma praça, que uma comunidade agitadora resolveu tombar, por ordem da boemia, da folia e do povo, sob o sugestivo nome de “Praça dos Prazeres”, onde acontecia, há alguns anos, uma gigantesca aglomeração carnavalesca que durava cerca de sete dias. Sua quadra ficava tomada por brincantes, gente de todos os sexos e cores, aquela alegria sem fim, irritante a qualquer tristeza; o chão brilhava salpicado de purpurina, e o ar se enchia com o senhor de todas as justificativas anticarnavalescas do mundo: o cheiro de mijo. Era tanto carnaval embaixo do seu bloco que o Samuel preferia sair, mesmo sem nunca ter apreciado o clima da festa.
O carnaval de 2020 foi frenético para o casal. O bloco preferido da Sara, chamado Baby Doll de Nylon, não saiu, e ela, para ir à forra contra os desígnios do destino que a privaram se seu momento máximo do ano, realizou uma verdadeira epopeia carnavalesca, ao lado do cansado, porém sempre presente, Samuel. Eles peregrinaram por todos os blocos possíveis. Até no Bloco Celta, da Praça dos Prazeres, o casal se aventurou; ele foi fantasiado de drag-viking, para não deixar de lado sua eterna peruca rosa-choque. A Sara nunca brincou tanto o carnaval em toda a sua vida. Parecia até que estava pressentindo o imprevisível, breve e trágico devir.
A Sara morreu de Covid-19 em maio de 2020. Foi tudo muito rápido, e o Samuel, nove meses depois, mal conseguia encadear os fatos que culminaram nesse desfecho desolador. Ele também se contaminou com o vírus, logo depois dela, mas não apresentou nenhum sintoma da doença. O Samuel tomou um choque tão grande que demorou a entrar no luto, e, depois, a sair dele. Arrumou um terapeuta e, algumas semanas após, um cachorro para lhe fazer companhia. Não saía mais de casa. O trabalho, que já estava em regime remoto, concedeu-lhe uma licença para tratamento de saúde, pois ele não conseguia se concentrar em nada. Ficava o dia todo contemplando a vida como se não fosse parte dela. Durante muito tempo, conviveu apenas com o Patrique, o cachorro. Era um vira-lata cor de caramelo, de porte médio, que estava sendo doado em um petshop perto de sua casa. O nome, Patrique, ele escolheu porque o cachorro da infância da Sara se chamava Patrick. O Samuel fazia questão da grafia aportuguesada do nome, não gostava muito de estrangeirismos, mas queria de qualquer jeito um cachorrinho chamado Patrique.
Então, o Patrique, dali por diante, passou a ser a grande motivação dos movimentos do Samuel. Era para passear com ele e colocar comida no pote que se levantava da cama. No começo, descia uma vez por dia, de manhã; depois, passou a fazer uma caminhada com Patrique no final da tarde. Um tempo depois, saía também um pouco antes do almoço, para lhe abrir o apetite, que, ainda assim, era pouco. O Patrique adorava. Era um cão alegre e não muito invasivo, de forma que o Samuel já conseguia manter diálogos relativamente longos com ele.
O Samuel não cozinhava, apenas enfiava umas comidas congeladas no forno de micro-ondas e fazia as refeições. Via as notícias sobre a pandemia de Covid-19 no telefone celular, e o Brasil entrando em colapso sanitário o fazia tremer de medo. Estava profundamente traumatizado pela morte da Sara daquela forma tão repentina, sem que ele sequer conseguisse se despedir. Ela trabalhava como enfermeira, e passou mal no trabalho: perdeu o ar, foi rapidamente internada, teve uma súbita piora e foi intubada. Ele não pôde vê-la, não pôde mais tocá-la, nem ouvir a sua voz, isolada que estava na UTI do Hospital Regional da Asa Norte, onde ela trabalhava. Quatro dias depois, ela não resistiu. O Samuel passou um mês anestesiado, cheio de antidepressivos, alheio a tudo o que ocorria ao redor. Era só dor e luto. Depois, foi retomando o contato com a realidade, com a ajuda inestimável do companheiro Patrique.
Não fosse o cachorro, a solidão o teria consumido tal um buraco negro que suga todas as energias vitais para dentro de si. Por causa das saídas com Patrique, porém, acabava trocando umas ideias com uma ou outra pessoa, sempre fazendo questão de manter uma distância enorme, e usando a máscara mais segura possível. Uma moça descia com seu cachorrinho pinscher no mesmo horário que ele, pela manhã. O Patrique e o cãozinho se estranhavam, latiam raivosamente um para o outro, e isso acabou precipitando a conversa dos seus donos. Ela era solteira, bem bonitona, o Samuel reparou, mas ele não se interessava por nada além de manter uma postura absolutamente contemplativa perante o mundo. Também conversava com o rapaz do balcão da padaria, e, por causa dele, voltou a ver jogos de futebol e a torcer um pouco pelo Corinthians, seu time do coração.
E, nessa rotina de sobrevivente do trauma, Samuel passou meses. Até que chegou o carnaval de 2021. Uma semana antes, pela primeira vez, sentiu alguma alegria. Estava feliz e aliviado porque as festas estavam canceladas e não haveria cheiro de mijo e gente de todo o tipo zanzando nos arredores de sua casa. Pensou que faria o que sempre quis fazer no carnaval: se trancar em casa e ler, ou assistir filmes e séries na televisão. A noite da sexta-feira, 12 de fevereiro, foi a mais melancólica véspera de carnaval que ele já vira. Não havia ninguém nas ruas, e o silêncio parecia fagocitar todas as existências ao redor. Samuel pegou um romance na estante, sentou-se na poltrona, leu dois parágrafos e parou. Foi até a janela, e ficou imaginando como seria se houvesse um carnaval, aquela confusão, o cheiro de mijo, os gritinhos, as fantasias. Ele sentiria irritação se aquilo estivesse acontecendo. Mas, naquele dia, sentia apenas um vazio insuportável, o vácuo do carnaval. Foi dormir e não sonhou.
No sábado, manteve sua rotina com Patrique incólume. Desceu três vezes, não viu uma fantasia, não ouviu um tambor, não brilhou uma purpurina em lugar nenhum que ele passasse. Sentiu uma tristeza inexplicável, que era maior do que o alívio, e também uma irritação, porque não queria dar o braço a torcer de estar sentindo falta do carnaval.
− Ô inferno de vida! – gritou, no meio de um descampado de quarenta mil metros quadrados que ficava bem perto da sua casa.
− Au a uau au arffff arrrgh – o Patrique sempre respondia a qualquer vocalização do Samuel.
No domingo de carnaval, antes do horário de descer com o Patrique, o Samuel despertou. Ouviu, ao longe, alguns sons de tambores, e, talvez, um saxofone, ou trombone, não conseguia identificar. Lembrou-se de que era um músico frustrado, tentou ser saxofonista, mas desistiu após três anos de muito sofrimento, tentando domar o som daquele monstro. Riu de si mesmo: “é cada coisa que a gente inventa na vida”. Chegou na janela e não viu nada, mas o som dos instrumentos lhe chegava mais nítido. O sol acabava de despontar ao leste da Asa Norte, invadindo sua sala em um raio suave que, misturado ao odor do orvalho, trazia aquele maravilhoso clima de um simples início de manhã. Respirou fundo esse ar renovador, e resolveu descer mais cedo com o Patrique. Abriu o aplicativo do celular, e colocou para tocar, enquanto trocava de roupa e calçava o tênis, aquela velha canção de Luiz Bonfá, que um dia ousou tocar no sax, tão propícia àquele momento. Emocionou-se com a melodia de Manhã de Carnaval. Lembrou-se de sua peruca rosa-choque, teve até vontade de bota-la na cabeça, mas sentiu vergonha do ridículo que passaria. Nessa hora, pensou que havia uma coisa boa no carnaval: as pessoas podiam usar as roupas que quisessem. Se fantasiadas, tudo bem; se não, tudo bem também; se muita roupa, tudo bem, se pouquíssima, tudo bem também. Todas as vestes eram permitidas e não julgadas por ninguém. Talvez isso fosse a evolução da liberdade que o verso do Chico Buarque evocava. Lembrou da Sara e agradeceu por ela tê-lo permitido ser livre, mesmo que ele próprio não soubesse disso.
O Samuel desceu e mudou seu percurso tradicional. Foi atrás do som, na direção da Praça dos Prazeres, que ficava a uns trezentos metros de sua casa. Lá chegando, viu uma pequena equipe de filmagem, e o que parecia ser uma banda de fanfarra, só que seus integrantes se espalhavam, permanecendo bem distante uns dos outros, no terreno vazio que se agigantava por detrás da pequena Praça. Tocavam marchas tradicionais de carnaval, e não havia público. Também, pudera, eram seis e vinte da manhã. Os músicos usavam máscaras brilhantes e coloridas, cobertas por lantejoulas. Os saxofonistas, trompetistas e trombonistas tinham máscaras com orifícios onde colocavam os bocais de seus instrumentos. A cena era triste e muito bela, a alegria da música e das fantasias sendo abraçada pela luz da manhã, contrastando com a ausência de gente pulando em volta. Ele parou na pracinha, bem em frente ao local onde, uns anos atrás, funcionava o Balaio Café, um lugar de agitação cultural intensa, e ficou admirando aquele momento insólito. De repente, uma moça surgiu detrás do prédio, empunhando um trombone, subiu no banco de concreto da pracinha e seguiu tocando as marchas carnavalescas, acompanhando a banda. Com a proximidade do som, o Patrique começou a uivar e a forçar a coleira na direção da moça. Ela percebeu a parceria canina, e, nos momentos de pausa do trombone, o Samuel viu que ela sorria para o Patrique, que uivava loucamente. O cachorro quase levitava do chão de tanta força que fazia para chegar perto dela. O Samuel, em pé no chão, estava a uns três metros da moça em cima do banco, de modo que sua visão, em linha reta, dava direto nas coxas dela. Ela vestia apenas um maiô prateado todo brilhante, por cima de uma meia arrastão. Aquelas pernas estavam hipnotizando o Samuel, mas ele não queria olhar tanto, não queria ser um babaca machista, então olhava para o trombone, mas o Patrique uivava e forçava a coleira, e então ele olhava para baixo para segura-lo, e quando queria voltar a direcionar o olhar ao trombone, acabava parando nas pernas da trombonista. Quando a banda terminou de tocar a Jardineira, ouviu-se um apito, e a moça do trombone abaixou o instrumento, tirou a máscara e sorriu, enquanto pegava uma garrafinha com água para aliviar a sede. Era um intervalo. O Samuel não conseguia não olhar para ela, porque aquele brilho intenso, o sorriso, as pernas, o trombone, tudo aquilo era um conjunto irresistível. Ele aplaudiu timidamente. Ela agradeceu, e apontou uma cestinha pequena que havia deixado no banco, e ele nem tinha visto. Dentro da cesta, havia panfletos, e o Samuel pegou um. Estava escrito “Quem Ama Usa Máscara, Bloco de Carnaval – live no Youtube na terça-feira de carnaval, 2021, às 18h”. A moça falou:
− A gente vai fazer uma live, estamos gravando um clipe para fazer uma chamada. Estamos fazendo agora de manhãzinha para não juntar muita gente. Fazemos o carnaval do jeito que dá, né?
− Puxa, que bacana! − o Samuel respondeu.
− E você? Está sentindo falta do carnaval? Que graça o seu cachorrinho, ele gosta do trombone.
− Sim, ele gosta de música. No mais, não sou muito de carnaval. Mas achei legal demais a iniciativa. Como você se chama?
− Aline.
− Parabéns pelo trombone. Eu sou Samuel, muito prazer.
Ela agradeceu com a cabeça, botou a máscara e o trombone na boca, e começou a tocar sozinha, sem o acompanhamento da banda. O Samuel identificou imediatamente a melodia: Manhã de Carnaval. Aquilo era para matar. A nota era longa, e o Patrique voltou a uivar em resposta ao trombone, e a querer se aproximar da moça. O Samuel ia se afastando na direção da escada do bloco em frente, quando deu um pequeno tropeço que o fez soltar a guia do Patrique. O cão correu e subiu no banco, sentando-se do lado da Aline, iniciando, com ela, um dueto espetacular. Ela tocava, ele uivava. O Samuel ficou estático, tentando segurar as lágrimas. Súbito, apareceu uma palhaça em cima de enormes pernas de pau, com um saco de purpurinas e confetes coloridos, que ela passou a jogar por cima do dueto. A cena que se seguiu foi absolutamente mágica. Ninguém filmou. A luz da manhã, a melancolia da melodia, tão belamente interpretada, salpicada do brilho de uma chuva de purpurina, junto ao uivo do Patrique, escancarando o profundo entendimento canino da alma humana, naquela dura solidão de uma manhã de carnaval como nunca antes houvera, não poderia mesmo, jamais, ser reduzida a um aglomerado de pixels. O Patrique permaneceu sentado e uivando até o fim da música; seu dono desistiu de segurar as lágrimas e de tentar alçar a coleira do cachorro, e permaneceu imóvel, embasbacado, entregue à purpurina que a palhaça não parava de lançar ao alto. Quando terminou a música, o Patrique, agora caramelo-cheio-de-brilho, ganhou uma festinha da Aline, e o Samuel se aproximou. No rosto dele, ela viu uma lágrima cheia de purpurina, e se surpreendeu:
− Você chorou!
− Foi bonito demais isso – ele respondeu, ainda sem enxugar as lágrimas.
− Eu tinha entendido que você não gostava de carnaval.
− Pois é, mas eu acabei de descobrir que meu coração é todo carnaval.
A Aline apenas sorriu. A poesia do carnaval aconteceu. O Samuel pegou a coleira do Patrique, se despediu e foi para casa, com o panfleto no bolso. Estava apaixonado.
GABRIELA TUNES – Protagonista de uma trajetória errante, desemboco aqui. Já fui ou talvez ainda seja microbióloga, ecóloga, pretendente a filósofa, capoeirista, flautista, nadadora. Servidora pública, moradora de Brasília, sou sonhadora de sonhos de liberdade, de carnavais, de democracia, de diálogo, de encontro, de amor e de arte. Desde sempre, flamenguista. Para sempre, humanista. Doravante, cada vez mais feminista. Por princípio, antifascista. Amo escrever, e a folha em branco é onde posso e sempre poderei seguir errando. Estou aqui.