Um Carnaval chamado Notting Hill
Considerado o maior festival de rua da Europa, o Carnaval de Londres é uma celebração inesquecível e o Brasil é protagonista nesta festa.
O mês de agosto é tempo de Carnaval no Reino Unido. Uma folia muito especial que reúne as culturas carnavalescas do mundo todo. Milhões de pessoas brincam nas ruas da capital do país, um desfile de sabores, cores e músicas dos mais bonitos do planeta. A festa é uma celebração da migração e das manifestações interculturais, um verdadeiro triunfo da alegria e do afeto.
Um marco histórico do Carnaval de Londres é que a festa nasceu para integrar as diversas comunidades de moradores da capital da Inglaterra. O Carnaval surgiu como forma de enfrentamento às intolerâncias e discriminações, em 1959. Neste ano, a jornalista de Trinidad e Tobago, Cláudia Jones, promoveu uma apresentação carnavalesca pelo fim da intolerância racial, que na época era a força motriz de conflitos que resultaram no inaceitável assassinato de migrantes negros. E nos anos seguintes, a festa passou a ocupar o famoso bairro de Notting Hill.
Desde então comunidades, famílias e grupos promovem o Carnaval neste território e tornam a cidade mais humanaApós a segunda guerra mundial, Londres foi praticamente destruída, a força de trabalho para a reconstrução da capital do Reino Unido veio das colônias inglesas, em especial as do Caribe.As manifestações culturais, com destaque para a música e a gastronomia da América do Sul são tradicionais no Carnaval de Notting Hill.
A força dos tambores, a diversidade musical fazem deste Carnaval, um espetáculo singular e inesquecível. As chamadas “steelbands” – desfilam com os tambores de aço pelas ruas que são vizinhas da famosa Porto Bello Road (uma curiosidade, Caetano Veloso conta que os primeiros acordes de reggae da música brasileira estão no disco Transa, na música Nine out ofTen – escrita e composta neste bairro) e a melodia destes cortejos, com os músicos de várias gerações é uma das atrações mais especiais do Carnaval de Notting Hill.
A cada edição a festa tem recorde de público e mantém a tradição de ser uma grande celebração de convergência multicultural e da migração entre povos. Em tempos de Brexit, estima-se que mais de 2 milhões de pessoas aproveitem o feriado bancário do mês agosto, para promover as Culturas Carnavalescas de seus países, em Londres.
O Carnaval é gratuito, com esquema de transporte especial para garantir a mobilidade urbana e costuma ser seguro para a maioria de brincantes e protagonistas da festança. São mais de 40.000 voluntários e cerca de 9.000 policiais trabalham no Carnaval. Entre sotaques transatlânticos e o cheiro de churrasco jamaicano, todo mundo atua para que a festa seja garantida em cada esquina.O Brasil e a Jamaica se destacam neste Carnaval, por agremiações que vão desde Escolas de Samba aos Sound Systems Jamaicanos.
O Brasil no Carnaval de Notting Hill
Em 1984, surgiram as primeiras escolas de samba em Londres. Inspiradas no legado das escolas de samba do Rio de Janeiro as indumentárias, personagens, samba- enredos desfilam na London School of Samba, Paraiso School of Samba e Quilombo do Samba. As bandas percussivas e maracatus também fazem parte da “Brazil Parade”. Em 2022, Carlinhos Brown ocupou o Carnaval de Londres. O músico formou centenas de percussionistas, que hoje tocam em diversos países do mundo. Entrevistamos o artista –sobre esta nova jornada carnavalesca.
– Primeiro parabenizar pela experiência do Guetto Square London. E conta pra nossas leitoras e leitores sobre seudesejo ao movimentar esta energia em Notting Hill, as intersecções, simbiose e simetrias entre Carnaval e a Diáspora de Matriz Africana
O carnaval que fazemos na Bahia com ares regionais se internacionaliza justamente por esse perfil adequadamente aos nossos desejos identitários de busca e de fortalecimento das matrizes. O que me gerou o interesse de estar em Londres, porque fala-se que lá é, sobretudo, um carnaval do Caribe e Salvador, Bahia, é a primeira cidade da América Latina. Ou seja, para a rumba acontecer e ser adotada por Cuba daquela forma, ela também passou pela Bahia. E todas essas identidades diaspóricas, mantém o que nós somos. Nosso carnaval tem uma espiritualidade enorme e sem deixar, jamais, de ser festivo. E pude observar, em Notting Hill isso, sobretudo quando comecei a cantar em Ioruba. As pessoas começavam a se aproximar e a se identificar, então eu cantava uma música que eles identificavam a língua, assim como também aconteceu quando cantei em espanhol. Então, acredito que essas são as simetrias. Agora, claro que fui com um Carnaval mais orgânico, tocado de mão, com músicos executando ao vivo e acho que isso chamou bastante atenção.
– Você pode compartilhar uma memória do Carnaval de Notting Hill?
Tenho algumas memórias lindas do Carnaval de Nothing Hill. Uma delas é uma policial dançando comigo espontaneamente. Como os policiais lá são espontâneos, alegres. Eu dei uma flor para ela, ela agradeceu e me deu um abraço, achei isso muito cortes.
– Vocês “linkaram” Brasil e Inglaterra, podem comentar este intercâmbio cultural entre estes dois países?
Sim, linkei o Brasil e a Inglaterra. Fiz uma versão de HeyJude que chamo de Hey Dom. Foi uma ideia de fazer uma homenagem a Dom, por tudo o que aconteceu na Amazônia e fiz para ele também ser alguém próximo de todos nós das comunidades baianas. Além disso, também preparei um dance queen para a Rainha. Ela ainda estava viva e a gente tocou esse.
– Qual a dica para quem quiser curtir Carlinhos Brown, em Notting Hill? Vocês têm planos para a próxima edição?
Sim, fui convidado para fazer uma edição especial em estádio do Brasil Gueto Square. Estamos nos preparando muito e isso vai ser muito bom. Vai ser como um pré-carnaval que a gente faz no Brasil, antes de ir às ruas. Importante destacar que o carnaval lá se experimenta bastante.
Quem me convidou para esse carnaval foi um ex-aluno meu que está em Londres. Ele tem os mesmos modelos da minha criação que é a Timbalada. Ele dá aulas de Timbalada, lá. Eles fizeram uma homenagem para mim e fiquei lisonjeado e com vontade de estar lá. Ou seja, quando a própria vida lhe convida a ser Carnaval. Fui levado pela mão de um dos meus e estou muito contente de voltar e de ver a felicidade dos brasileiros. O Carnaval no dia da gente dobrou de público, com mais de 1 milhão de pessoas e brasileiros vindo de várias partes da Europa. Nós vamos seguir forte porque esse foi apenas um começo.
O aluno que Carlinhos Brown menciona é Marcos Santana, 46 anos, que comanda a Tribo – grupo de percussão de samba reggae e que desfila no Carnaval de Londres. “Cheguei em Londres em 2006, a minha formação na Timbalada possibilitou trabalhar com Educação e arte para as mais diversas Culturas. E hoje somos parte do Carnaval, representando o Brasil com a Tribo”, explica. Além da Tribo, a “BrazilianParade” é composta pela representação do Maracatu Porto Rico em Londres, chamado Baque de Axé, as escolas de samba, os grupospercursivos Dendê Nation e Batalá, entre outros.
BRASÍLIA NO CARNAVAL DE LONDRES
– Em 2022, pela primeira vez uma dupla de artistas da capital federal do Brasil, participou oficialmente da programação do Carnaval de Londres. Aisha e Yaminah – primas, de uma família de artistas de Brasília, na qual a matriarca, Dona Lydia Garcia é uma importante liderança do movimento negro. Conversamos com a dupla super talentosa, que agora segue sem fronteiras sobre este feito histórico:
Qual foi a melhor memória desta experiência em Notting Hill?
Difícil dizer, foram dois dias de uma imersão intensa de conexões, descobertas e nostalgias. Desde o primeiro dia, saindo do hotel e já fazendo uma amiga no ônibus, sentir e ver o pessoal compreendendo corporalmente os ritmos musicais do Brasil no nosso set. Mas, onde me acessou profundo foram os momentos no Sound System ChannelOne (tradicional Sound System de Londres).
Estar lá e ver a alegria da minha prima e entender a nossa existência negra naquele espaço. Vimos na decoração da parede, atrás das caixas de som, tinham duas bandeiras idênticas as da casa de minha avó Lydia onde cresci. Ela usava na porta para separar a área da lavanderia do quintal. Me transportou pra minha infância, me senti na casa da minha avó.
E acessamos lugares que ainda nem visitamos, mas a nossa ancestralidade fez este caminho.Este lugar de sensação, de união, de sentir o tempero das comidas jamaicanas. E como um carnaval protagonizado por pessoas pretas, diferente do Brasil, a melhor memória que eu tenho de Notting Hill é a existência que eu acesso neste lugar.
Londres me proporciona criar deste lugar – não quero diminuir as opressões e violações do legado escravocrata da Europa, a Europa foi construída com nosso suor e sangue e tem muitas reparações para realizar sobre este legado tão injusto, mas nossa reintegração lá é diferente, apesar do racismo estar em todo lugar.
Em Londres, existe esta essência, conseguimos criar conectadas com esta potência de conexão com minha mãe, esta potência de conexão de diáspora que é ver as gerações, sons, fusões e como a música é transversal as nossas identidades e continua reverberando esta bagagem, criando novos estilos, a multidão, a pluralidade, a maioria negra, mas gente do mundo todo, esta expansão. A memória principal é a de expansão. Sermos as únicas brasileiras a tocar num palco do Notting Hill Carnival.
Vocês foram as únicas DJS brasileiras a tocarem oficialmente na programação do Carnaval de Notting Hill 2022, conta mais sobre isto.
É surreal, temos muitas construções, em Londres conseguimos nos unir para criar. Ser enaltecida, ser respeitada e ser reconhecida na nossa pesquisa e o nosso jeito de discotecar. Somos apreciadas e reconhecidas aqui.E temos a oportunidade de compartilhar nosso som. Então, é muito lindo fazer parte desta história. E de fazermos História. Tivemos muitas surpresas, ainda nem caiu a ficha, mas isto só nos inspira mais a trazermos mais mulheres, mais pessoas, mais Carnaval do Brasil pra Notting Hill.
Como sentiram a diáspora africana no Carnaval de Notting Hill ?
Em vários lugares, em vários penteados, em vários looks, em várias estampas, em vários sorrisos, estávamos no ChannelOne e pensamos vários ancestrais, a nossa herança genética faz esta aliança. Reforça e faz com que a gente resgate mais ainda, a música que escutava com minha mãe, a arte que minha avó produz, a oportunidade de ter filmado e documentado tudo isso. Entrevistamos mulheres que são fundadoras dos Sound Systems femininos e este filme é muito especial. Este berço do Bazafro [empreendimento do matriarcado de Lydia Garcia, surgido no DF] e como isto reverbera, esta continuidade, como artistas é um mergulho profundo de autenticidade, de novos estilos, sons novos. Mas, que lá no fundo a gente já conhece.
O que vocês diriam para quem ainda não conhece o Carnaval de Notting Hill
Sem dúvida a surpresa que existem outros carnavais fortes como o nosso, em outras partes do mundo, esta parte geográfica, nossa herança genética e esta conexão diaspórica está no mundo inteiro, então a gente tem família no mundo inteiro e quando a gente tem família a gente tem festa, a gente tem luta. Porque o Carnaval nasce desta resistência, e vira esta celebração, este marco na História. Vale muito a pena mergulhar no Carnaval de Londres, inclusive para pesquisar os sons, as playlists, a História, para ter a sensação do que é este Carnaval. E se tiver a oportunidade de ir, com certeza vale muito a pena.
Vocês linkaram Londres e Brasília, nesta discotecagem histórica, acham que as duas cidades dão “match” ?
Super dá match ! Londres é “grande” mas é “pequena”, assim como Brasília é “grande”, mas é “pequena”. E tem este viés de arte, cultura, rock, tribos. Lugares de convergência de artistas, linguagens, encontros – são capitais dos países. Me sinto em casa. As bicicletas, o céu. Parece nosso berço. Londres tem um pouco de Brasília e Brasília tem um pouco de Londres, sim.
QUAL O DESEJO PARA OS PRÓXIMOS CARNAVAIS ?
Levar para lá mais e mais pessoas para compartilhar esses momentos conosco, conectar Reino Unido e Brasil, trazer o pessoal da Inglaterrapra cá!
Neste 2023, o Carnaval de Notting Hill acontece entre os dias 26 e 28 de agosto. E promete ser mais uma edição inesquecível no verão carnavalesco de Londres.
Por Juliana de Andrade – Coordenadora da Rede Carnavalesca
Escrever sobre este Carnaval é uma emoção imensa – esta repórter cobriu as edições de 2018,2019 e 2022 – do Carnaval Londrino – e conta tudo neste especial para o Correio